segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Interpretação do filme Julieta dos Espíritos de Frederico Fellini
                                        Por Verusa Silveira

“Se não acendemos a luz do nosso imaginário, não vemos nada.” Carl G. Jung


Trata-se de uma obra de arte da imaginação criadora do genial diretor de cinema Frederico Fellini, primeiro filme colorido, onde observamos o jogo de luzes e sombras, o preto e o branco nas roupas e nos objetos e  a cor vermelha está  em destaque em algumas passagens representando fogo, vida, paixão, sangue, sexo, o despertar da consciência feminina na protagonista Julieta.
Pensamos nesse filme como um Sonho e tentamos interpretá-lo como tal.  O sonhador dedica essa obra à sua mulher Giulietta Masina, protagonista principal dessa trama, com seu olhar claro de criança transmitindo todas as emoções.

Para Fellini, a produção de um filme é uma descoberta  espiritual, onde os sonhos, as percepções extra-sensoriais, o oculto, estão sempre presentes, o qualificando com um estilo singular, de personagens às vezes grotescos, loucos, bizarros, exagerados em seios e nádegas, representações de seu inconsciente, em sonhos, fantasias, lembranças de sua infância e processo imaginativo fértil  de uma mente aberta para o Universal.  Quando questionado sobre a verdade ou mentira em suas imagens excêntricas, fora do contexto convencional, ele diz que a verdade propriamente dita torna-se secundária.
O verdadeiro artista sempre transita entre a realidade consciente e inconsciente, mantendo a porta aberta para outra dimensão.

Fellini foi analisado no início dos anos 1960 por um analista Junguiano  Ernst Bernhard e se familiarizou com as teorias sobre análise dos sonhos e o conceito de inconsciente coletivo e seus arquétipos, influenciando sua obra. Ele afirma que o pensamento Junguiano oferece uma estrutura  para suas explorações cinematográficas.
Ele foi incentivado por seu analista a escrever e desenhar seus sonhos, exercício que durou até 1990, tendo falecido em 1993 aos 73 anos. Viveu 50 anos com Giulietta e esta só sobreviveu 05 meses após sua partida. Dizem que nesse filme estavam passando por uma crise conjugal. Ela atuou em 08 filmes dirigidos pelo marido. Seu analista faleceu em 1965, ano em que dirigiu esse filme.

Caetano Veloso, cantor e compositor brasileiro e baiano, foi convidado no final dos anos 90 pela irmã de Fellini em nome da Fundação Fellini a visitar Rimini, cidade onde ele nasceu, para fazer uma apresentação, em função de uma música que ele criou inspirado em Giulietta e que a tocara, embora esse encontro não se desse em vida. Caetano se emocionou muito nesse show, apesar de sua voz estar prejudicada e disse que sentia tristeza, orgulho exaltado e vagos medos ligados ao sentido de sua vida. Diz que na realização do show, criou-se uma atmosfera mágica que vem de um sentimento de recuperação metafísica do tempo perdido que é semelhante ao que sente em relação aos filmes de Frederico.  Existiu um amor muito grande entre esses dois grandes artistas.

Nossa proposta é olhar esse filme como um sonho de Fellini, focalizando o tema do feminino.

Cenário:

Uma bela casa branca de dois andares, uma mansão no campo, com uma paisagem bucólica cercada por um lindo jardim onde eram cultivadas rosas.  É uma casa próxima ao mar e a um bosque cercado por árvores. Essa localização especial permite uma riqueza para os devaneios.
Os arquétipos do mar, bosque e jardim são representações simbólicas do Self, arquétipo que representa o centro da personalidade total, consciente e inconsciente; é o núcleo mais profundo da nossa consciência, a centelha divina que vive em todos os seres humanos, a fonte da vida. 

Personagens que habitam a casa: Um casal de meia idade Julieta e Giorgio, duas empregadas jovens Elizabete e Terezinha e um jardineiro.
Julieta é uma mulher refinada, excelente dona de casa, gosta de ler e cultiva seu jardim com amor. Tem uma aparência simples, apesar de bem vestida e de bom gosto, fuma muito e está preocupada com o envelhecimento, olhando sua face no espelho e observando a necessidade de revitalização. É uma mulher de temperamento  introvertido, sensível, é obediente ao marido e respeita as convenções sociais.

Giorgio trabalha como relações públicas, é bem sucedido na profissão, realiza eventos, festas, é um tipo extrovertido, sedutor, veste sempre um terno branco, está sempre ausente, viaja muito e mantém o papel de marido preservado.
A família de Julieta que frequenta sua casa é uma mãe, duas irmãs e duas sobrinhas pequenas.

Sua mãe é uma mulher muito bonita, narcisista, vaidosa, excessivamente arrumada, com rosto frio, distante, dominadora.  Ela critica a filha em relação à aparência, achando-a apagada e Julieta é sempre comparada com a mãe demonstrando inferioridade no nível de beleza e sedução. As irmãs repetem o modelo da mãe, controladoras, fúteis e artificiais.
Uma das irmãs é atriz de televisão, muito centrada em si, narcisista e histriônica. A outra tem um perfil autoritário, deixando as filhas aos cuidados de Julieta que é afetiva e gosta de cuidar.

História:

O início da trama mostra o empenho de Julieta em se arrumar para esperar e seduzir o marido, trocando várias perucas e vestidos, acompanhada de suas amas, que admiram suas peças e emite opiniões.  O clima é de celebração de 15 anos de casamento e esta preparou uma surpresa romântica para o marido à luz de velas.
Ao entrar, ele se dá conta que esqueceu essa data e finge amá-la com uma atitude habitual de marido fiel.

Acender o fogo representa simbolicamente a libido como energia psíquica em seus vários níveis, do sexual ao espiritual.
Giorgio entra acompanhado de um grupo de amigos, artistas extravagantes, médico e advogado, que invadem a casa; Julieta os recebe bem, apesar da frustração; é uma pessoa contida em suas emoções e bem adaptada ao sistema.

Uma das convidadas Valentina é sensitiva e coloca no jardim um mobile para afastar maus espíritos. Outra, escultora, bem sensual se oferece para preparar um prato. Tem um médium Genius radioestesista que traz um pêndulo para percepção de energias extra físicas e fala de astrologia. O clima muda totalmente para um suspense e Julieta está apreensiva, apesar de Giorgio confessar seu amor.
O grupo decide fazer uma reunião mediúnica e invocar espíritos, colocando incensos e se dão as mãos criando uma corrente de energia. Os homens ficam de fora, só o médium participa.

A primeira mensagem é de um espírito Íris: “Amor para todos” sugerindo uma expansão do amor possessivo, fechado, para um amor inclusivo, Universal.
Julieta passa mal durante essa sessão e está muito mobilizada com os novos acontecimentos, despertando para realidades invisíveis, seu inconsciente. Diz que sente medo e fascínio ao mesmo tempo pelos fenômenos do mundo psíquico. Recorda que era uma criança que via o mundo espiritual.

Ao acordar, seu marido já havia saído e ela dirige-se à praia com suas sobrinhas e conversa com seu médico sobre suas percepções da noite anterior, recebendo julgamentos de uma atitude anti científica e dá explicações racionais dos fenômenos, lhe aconselhando a fazer mais amor com seu marido e ficar mais aterrada.
Esta fecha os olhos, e vê uma bailarina no circo se balançando num trapézio, recordação de infância.

O que representa essa imagem como personificação de conteúdos do inconsciente de Julieta?
Mais adiante, aparecem duas rodas girando na praia por dois garotos e uma comitiva que trazia uma tenda para ser armada na praia com uma mulher belíssima de biquíni, bem sensual e acena para Julieta. As sobrinhas vão cumprimenta-la e esta as recebe afetuosamente, sendo a sua vizinha Suzy, uma mulher de temperamento oposto ao seu, bem excêntrica, sensual, livre, exótica. Ela manda oferecer uma cesta de frutas, demonstrando um desejo de fazer amizade. Julieta parece temer esse encontro.

O médico, ao seu lado, observa atentamente esta mulher que se instala na praia. 
Julieta cochila na cadeira e sonha com um velho, vestido com um roupão vermelho saindo do mar puxando uma corda e pedindo que ela o ajude. Em seguida vê uma plataforma encima do mar com cavalos negros mortos e também de pé; num barco, figuras estranhas de homens e mulheres tatuados, semi nús; ela se assusta e pede socorro ao seu médico.

Que aspecto de Julieta pode-se associar a esse velho saindo do mar, pedindo ajuda?
Que lugar é esse que ela ocupou puxando a corda?

Podemos fazer associações ao saber toda história.
Retorna da praia com as sobrinhas e a babá; encontra-se num estado alterado de consciência, entre a vigília e o subconsciente e ouve vozes lhe chamando, está muito perturbada.

Ao chegar a casa, recebe sua família, mãe e duas irmãs que vieram buscar as meninas. Elas se mostram críticas e pouco afetivas, sem Alma.
À noite, ao dormir com o marido, ele sonha chamando Gabriela que a deixa perplexa e inicia a desconfiar de uma traição. Ele nega quando interrogado e ela lembra que alguém está ligando com frequência para sua casa. Julieta finge na sua inocência não acreditar na traição

Toda essa mobilização sugere o fim de um casamento, de uma fase de sua vida, onde os conteúdos do seu inconsciente estão mostrando ameaças, medos, seus instintos animais mortos representados pelos cavalos, cenas de erotismo, desejo, sexo, promiscuidade, aspectos sombrios de sua personalidade reprimida.
Os sonhos são mensageiros do inconsciente e transmitem ensinamentos quando elaborados e compreendidos com o consciente através das quatro funções de orientação da consciência, o pensamento, o sentimento, a intuição e a sensação.

Tanto os sonhos dormindo quanto os devaneios, o sonhar acordado e as fantasias exigem atenção do sonhador. Sonho e Realidade se misturam nessa trama que envolve drama, suspense, comédia...
Julieta decide aceitar o convite da sensitiva Valentina para fazer uma consulta a um vidente famoso Bishma. Vai dirigindo seu carro e chove muito. É uma tentativa de enfrentar seu destino com coragem.

O vidente é considerado tendo o segredo dos dois sexos, um ser humano dotado de poder advinha tório como um oráculo. Ao subirem as escadas do edifício, as luzes se apagam e se ouvem trovoadas e relâmpagos; as forças da natureza estão bradando assim como a vida dessa mulher em transformação, como um vendaval.
Julieta está vestida com duas cores fortes, vermelha e verde e um lenço vermelho na cabeça; está bem bonita, apesar do medo e da tristeza.

Ao chegar ao edifício tem uma cerimônia de casamento e ela se detém a observar o juramento de união para sempre.
O vidente está manifestado por espíritos e faz várias perguntas e comentários sobre sexo, relação com o corpo, gostar de si e vivenciar o prazer.

“Conhece o Kama Sutra”?
“O Amor é uma “Religião” O Amor é também Arte.”

 Da prostituição?
 Você é a sacerdotisa do culto. Associamos à prostituta sagrada quando se fazia amor nos templos antigos, com um desconhecido, na iniciação aos mistérios do amor honrando Eros e Afrodite e escolhendo servir à deusa do Amor. O prazer estava associado à união da sexualidade com a espiritualidade.

“Na Tradição Antiga da Índia, o amor como religião é” amar a todos os seres’, expandir esse sentimento, a mesma mensagem do espírito na sessão mediúnica.
Julieta vê novamente a imagem da bailarina encima de um cavalo no circo.

Está muito apreensiva, e ao se despedir, Bishma dá uma nova mensagem de que “algo novo e muito bonito ocorrerá nessa noite”.
Voltam pela estrada com muita chuva, relâmpagos e trovoadas. Mistério!...

Julieta conta a Valentina enquanto dirige que seu avô apaixonou-se por uma bailarina do circo que era belíssima.  Ao relatar, vê as imagens desfilando em sua mente.
Ela é uma criança e está sentada no colo de seu avô; em seguida, caminha pelo circo fazendo contato com os personagens, animais, vê elefantes, acrobacias, etc.

Vê sua mãe fria e bela no camarote como observadora, assistindo ao espetáculo com um olhar frio e distante.
Seu avô confessa sua paixão para a neta e diz que uma bela mulher o torna religioso. Essa cena está repleta de homens agressivos que lhe assustam. Vê um avião primitivo, tipo 14BIS e diz que sempre imaginou que seu avô e a bailarina tivessem fugido no avião do circo.

Este foi repreendido pelo Reitor e expulso de todas as escolas do reino... E desapareceu. Um dia, ele voltou alegre e sua filha não o aceitou em casa. O bispo havia dito que ele tinha parte com o Diabo. Ainda criança, foi ao funeral de seu avô, e sua mãe não chorava. Ela trajava um vestido preto e estava linda como uma rainha sem coração.
Esse avô foi internalizado em sua memória como uma figura de fantasia idealizada, livre de preconceitos e ao mesmo tempo proibitivo. O circo representa o lúdico, o riso com os palhaços, jogos perigosos que exigem coragem como o trapézio, domar animais, um mundo de fantasia, beleza e criatividade.

Sua mãe foi internalizada como uma figura autoritária e repressora a quem ela devia obediência bem como às normas sociais estabelecidas do casamento, as prendas domésticas, vestir-se bem para estar sempre bonita e sedutora. Ela se opôs ao modelo materno criando uma formação reativa, indo para o oposto, contida, passiva, reprime suas fantasias lúdicas, sensuais, eróticas, mostrando-se como uma dona de casa exemplar, enraizada no cotidiano, com uma sexualidade reprimida cheia de recalques.
Valentina é seu oposto, voadora, sem raízes, se sente abandonada e procura nos oráculos, apoio e suporte na vida. Admira sua amiga e quer ajuda-la. Ambas estão com crise de identidade, de dar sentido às suas Vidas, se sentindo solitárias.

Ao retornar da consulta, Julieta avista no jardim um belo homem citando versos na neblina cinzenta, como foi previsto pelo vidente.

“Rosa áurea”.
Personifica o cultivo desse jardim por alguém que ama muito.

Faz um drink e lhe oferece. Entram num encantamento de enamorados.
Seu marido chega e apresenta seu amigo José, empresário e  toureiro que o hospeda na Espanha. É um homem rico e simples. Diz:

“O que vale é a doçura dos gestos... O equilíbrio.
O bom toureiro deve ter o coração puro... E o pensamento límpido.

Como os frades e os dançarinos.”   
Demonstra sua veia poética e seu estilo como toureiro. Julieta está fascinada com sua coragem e sensibilidade e empresta seu lenço vermelho para que ele possa aplicar sua arte com paixão. Ela se fez bela, vestindo um casaco de pedras bem colorido e está alegre. Seu marido está bem apagado nessa noite mágica, diante da empatia que se criou entre eles. Julieta experenciava emoções bem fortes que lhe ajudavam a ressignificar seu caminho como mulher desejada.

José expressou sua anima, arquétipo da feminilidade inconsciente do homem através da poesia, dos gestos afetivos, falou de Amor e ao mesmo tempo foi viril e corajoso ao demonstrar sua luta com o touro. Suas polaridades ficam bem evidentes.
Esse encontro com José é um despertar na psique de Julieta, do amor e da paixão por um desconhecido, dando um corte na sua relação vazia, monótona, fria, artificial com seu marido, criando Alma e possibilidade de uma projeção de seu Animus, arquétipo da masculinidade da mulher representando o intelecto, a palavra, a coragem, iniciativa, espírito, autoconhecimento.

O símbolo do Touro representa o aspecto animal instintivo, viril e físico de nossa psique, arquétipo da sombra.
José presenteia o casal com um telescópio, objeto simbólico que amplia a percepção visual.

“Estranhos jogos do Destino”...
 A psicologia analítica ou profunda fala do fenômeno da Sincronicidade, onde não existem coincidências, mas... Uma conexão simultânea entre eventos internos, subjetivos e fatos externos objetivos, gerando uma atração onde possa realizar-se uma alquimia de transformação. É a própria Vida unindo Almas em processo evolutivo.

José expressa em poesia:
“Que resta ao mundo sem uma noite como esta”?

“O encontro com um amigo”.
“A volta da calma perdida”.

“Tudo se torna claro, plausível”.
Julieta olha no telescópio e vê de novo a bailarina do circo, num momento de prazer.

Será que ela reconhece essa fantasia em seu íntimo?
Como ela internalizou esses elementos de Sombra a partir desse avô transgressor?
A figura paterna é desconhecida na sua história. Em suas imagens internas, aparecem muitos homens ameaçadores que podem representar a projeção de seu animus negativo.

No outro dia, ela escuta seu marido dialogando com a amante ao telefone. Sua irmã Adele, a incentiva a procurar um detetive para seguir Giorgio. Ela reluta a princípio, pois teme saber a verdade concreta.  Entra em uma nova fase onde o arquétipo da sombra, o mal reprimido, a mentira, as proibições estão presentes com intensidade. As máscaras começam a cair.
Relembra uma passagem de sua infância, onde representou uma santa mártir que foi queimada no teatro da escola e as freiras vestidas de hábito preto desfilam em sua frente, como na inquisição se queimavam as bruxas, mulheres sábias, intuitivas, com poderes de perceber as realidades invisíveis.  Sua relação com o divino aparece de uma forma sombria na ideia do pecado e do martírio imposto pela Igreja Católica para salvar a Alma.

Lembra-se da colega Laura que indaga se ela viu Deus e qual é sua relação com Deus?  Essa colega se matou por amor e disseram que foi acidente por afogamento. Revive a verdade nesse instante.
Na sua imaginação, seu avô aparece e manda retirar a neta do sacrifício e pede que lhe obedeça; sua mãe está ao lado do reitor que representa o poder e a repressão.

Julieta está conflituada, cheia de culpas, atravessando o lado sombrio da realidade; despertou o amor através de José e sente-se traída pelo marido. O que fazer?
Quando volta do detetive, tem uma visão em seu jardim que José está tocando violão; seu desejo de amor e sexo é evidente. O desejo é aceso pala falta de algo que se torna vital para ela.

Vai visitar a amiga escultora, mulher livre e apaixonada pela sua arte; dialogam sobre a visão de Deus e ela transmite a imagem de Deus como física e espiritual. É uma mulher autônoma e realizada a nível profissional e afetivo, é amorosa e satisfaz seus desejos sem culpa.
Esses encontros representam aspectos latentes da psique de Julieta em transformação, resgatando sua Alma, sua individualidade.

 “Quem sou eu”? 
Uma nova aparição no jardim, de um gato preto com laço vermelho no pescoço, animal de sua vizinha. Os gatos são símbolos femininos, introvertidos, contemplativos, sensuais, e eram companheiros das bruxas.

Julieta acolhe o animal com ternura, revelando uma empatia e encontra um pretexto para visitar Suzy; é uma casa bem bonita, cheia de obras de arte, várias esculturas e muitas flores.
Suzy a recebe com alegria e diz que sonhou com ela numa igreja e a reprovava, tendo chorado muito e acordou em lágrimas.

Esse sonho revela como sua vizinha a vê de maneira sagrada e repressora. O encontro de personalidades diferentes pode gerar uma transformação para ambas. Julieta está com muito medo, entrando nessa casa desconhecida, com uma mulher singular, solteira, e namora com vários homens, vive num palacete cercada de mordomias e vários personagens vivem nesse lugar: Sua avó que não dorme há cinco anos vê e sabe tudo, é uma maga; Arlete, uma mulher com distúrbios psíquicos, já tentou suicídio três vezes com depressão, sendo salva por Suzy que a protege. Julieta lembra-se da colega Laura já morta.
Suzi convida para uma festa em sua casa com seu marido e diz que gostaria de amar um só homem, mas não consegue; parece admirar o estilo de vida oposto ao seu.

Ela mostra sua intimidade levando-a para seu quarto rodeado de espelhos, cheio de fetiches e diz que os homens têm cada fantasia... Da sua cama desliza para um túnel onde cai na água quente como uma piscina. Diz: “Após fazer amor, escorregamos”.  Ela convida a amiga para experimentar e esta se recusa, mas... Vivencia a fantasia.
Caminham pelo bosque de bicicleta e Suzi diz que mantém o fogo aceso e não se nega a nada. Julieta ouve vozes: “Suzi é sua mestra, ouça e siga”.

Ela fala de seu casamento e que Giorgio é tudo para ela, o seu mundo... Esposo, amante, pai, amigo e minha casa; não menciona a traição. Um carro conversível  branco as acompanha com dois homens e Suzi os seduz com um espelho iluminando o caminho para chegar ao seu quarto que fica em cima de uma árvore e sobe manipulando uma alavanca e sentando numa cadeira. Julieta não aceita o convite para o sexo e se despede quase fugindo com medo.
Esse personagem Suzy é semelhante à visão da bailarina; uma mulher linda, sensual e corajosa, um aspecto latente na psique de Julieta.
Ela retorna ao detetive só e descobre que a amante de seu marido é uma jovem modelo de 24 anos e se chama Gabriela, confirmando o sonho de Giorgio. Ela chora muito.
O detetive é um senhor sinistro, ambivalente, astuto, dando mensagem dupla de moralidade em relação ao casamento, de permanecerem juntos e ao mesmo tempo dá ênfase às descrições que incentivam a separação e diz que presta serviço ao próximo. O psicólogo que o acompanha é um tipo superficial e descreve a personalidade pelas fotos dos clientes e seus comportamentos. Formam uma dupla de espiões natos.

Peripécia ou desenvolvimento do sonho:
A protagonista entra em nova fase e decide ir só à festa da casa de sua vizinha. Veste-se de vermelho e está sedutora e bem atraente. Diz que seu marido confia totalmente nela; ainda tenta justificar sua nova conduta livre. Ao entrar, é apresentada ao namorado de Suzi de 65 anos que gosta de fazer amor todos os dias. Julieta finge estar bem, mas seu olhar é triste.

Diz que tem vontade de se divertir. “Quero que seja feliz”, diz sua amiga. Nós reconstruímos o clima de uma casa de prazer. Entra um jovem bonito que ela apresenta como seu afilhado e Julieta fica atraída e o cumprimenta. Logo em seguida, tem uma visão de estar ardendo em chamas, de ser queimada na fogueira. Sai correndo. A sua consciência não permite que ela se liberte e faça sexo com um homem que lhe atrai.
Quando retorna em sua casa está tendo uma sessão de psicodrama com a Dra. Miller. Julieta aceita participar para espanto de Giorgio; ela está mais decidida e encarando a verdade, necessitando de ajuda para enfrentar seus conflitos. Vê várias imagens no seu campo mental, mulher enrolada numa serpente como Eva ou Lilith, seu oposto, representa a mulher liberada, que tem orgasmo. Vê-se na fogueira em chamas. Vê José e indaga se ele é real e o que lhe aconselha. Ele responde que só quer que ela viva bem. Está totalmente perdida, conflitada em seu mundo subjetivo.

O advogado diz que a lei já não requer flagrante no adultério e que basta uma prova e seu marido será condenado. Fala como um amigo que se interessa por ela.
A psicodramatista diz que Julieta identifica-se com o problema e esse é o seu erro. Caminham pelo bosque e aponta as grandes árvores como símbolo de uma forma de viver, profundamente enraizadas à terra e abrem os ramos em todas as direções, seu crescimento é espontâneo e este é o grande e simples segredo a ser aprendido.

Realizar-se espontaneamente... Sem conflitos, com desejos e paixões. Às vezes, é necessário falar com voz alta... Mesmo se é um estranho que nos ouve.
Deite-se na grama, relaxe... Não tenha receio. Olhe o sol entre os galhos. Tudo é paz, serenidade. Do que teme? Que seu marido a deixe. Na realidade, é o que deseja, quer ser deixada só. Sem ele, começaria a respirar, a viver... A ser você mesma. E pensa ter medo. Na verdade, tem medo de uma coisa, ser feliz.

Clímax ou suspense:
Julieta vai procurar a amante do marido que não se encontra em casa; é recebida pela empregada que arruma sua mala para viajar com Giorgio. Ela informa que seu namorado está muito apaixonado por ela, ficam bem juntos, ela o merece, escolheram os móveis juntos da casa e de bom gosto. Gabriela telefona e Julieta faz questão de se apresentar como esposa e esta a trata indiferente e que não tem o que falar com ela.

Julieta continua sentada naquela casa, vendo o retrato de seu marido, arrasada, humilhada, deprimida, chegando ao limite de sua virada.
Retorna à sua casa e encontra seu marido arrumando sua mala só pela primeira vez e ainda continua mentindo que vai fazer uma viajem para descansar. Ela, também continua fingindo, sem expressar suas emoções, o tratando bem como uma dona de casa maternal e despedem-se friamente, usando a razão lógica para se defender do fim de uma relação que representa uma morte psíquica. Ambos mantêm as aparências, as convenções representando o arquétipo da Persona.

Lysis ou Final do Sonho:
A empregada fecha todas as venezianas brancas, marcando o final de um Sonho.

Julieta chora a dor da despedida e ouve a voz de um espírito dizendo que faça o mesmo que ela e vem à lembrança de Laura que morreu por amor, espírito obsessor que acompanhou toda a jornada de Julieta.

Continua desfilando em seu campo mental várias imagens do passado e do presente; vê as freiras de preto, vê o jovem bonito vestido de branco, vê José, o toureiro, o velho de vermelho, o detetive e o psicólogo, Suzi descendo em sua cadeira que dá acesso ao seu quarto, o caixão da amiga, o avião do circo com seu avô, vê sua mãe e ouve seu médico dizer: Compre um cavalo, salte obstáculos, nade...

Relembra a psicodramatista:

“Sem Giorgio, começaria a viver, a respirar...”.
Julieta revê toda sua vida em alguns instantes, vai para seu quarto, acende a luminária como de costume, pega seu livro e não consegue acalmar sua ansiedade. Pede ajuda a sua mãe em seu íntimo e vê uma expressão malévola, exigindo obediência.

Vê uma nova porta que não se abre e afirma que sua mãe não lhe amedronta mais. Vê vários rostos amedrontados e as freiras. Vê a menina entre as chamas e desamarra os laços que a prendem e se abraça com ela, indo ao encontro do avô.
A última imagem é um carro alegórico, mistura do circo e dos personagens da casa de Suzi, seus amigos e todos que fazem parte de seu mundo interno e externo. Ela se despede do avô, ele diz que ela não precisa mais dele: “Também sou invenção sua... mas você é a Vida! Adeus Bistequinha.”

Supomos que o velho de roupão vermelho que sai do mar e pede ajuda é seu avô que funcionava como sua identidade masculina, paterna, imagem de animus, modelo idealizado de vida, um guia espiritual, representado pela cor vermelha e associado ao Diabo, ao bem e mal. Entregar a corda simboliza passar a responsabilidade de sua vida para que ela assuma suas polaridades masculina e feminina, sua autonomia. É o fim de um ciclo e recomeço. Morte e Transformação.
Todos esses personagens construíram essa possibilidade, sendo aspectos da psique de Julieta em metanóia.

Ela abre sua porta que dá para o jardim, recebe o vento, respira, ouve os espíritos lhe dizerem que são amigos verdadeiros, está serena, pois integrou sua realidade subjetiva e objetiva, sua psique está fortalecida, é uma mulher madura e amorosa.
Sai caminhando só pelo bosque entre as grandes árvores e inicia seu processo de individuação ou desenvolvimento da personalidade consciente e inconsciente.

Focalizadora: Verusa Silveira, psiquiatra e psicoterapeuta Junguiana, coordenadora do Núcleo de Estudos Junguianos- Bahia.
Realizado em 28/11/2012, em Salvador - Bahia 

 
Bibliografia:

Sam Stourdzé, TUTTO FELLINI
Edições SESC-SP

C.G. Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões
Editora Nova Fronteira

Robert Johnson, A Chave do Reino Interior
Editora Mercuryo

Nancy Qualls-Corbett, A Prostituta Sagrada
Editora Paulus

Aldo Carotenuto, Eros e Pathos: Amor e Sofrimento
Ed. Paulus